Costumo gostar dos textos do Antonio Prata, mas este último sobre o "Drummond Fascista Misógino” achei bem ruim. Sem graça, pois preguiçoso. Muita gente falou sobre como o texto faz exatamente o que está tentando criticar nos “jovens de hoje em dia”. Um tom reativo, assustado, com esses “jovens de hoje em dia”. A pouca generosidade com essa geração que tá vendo o futuro ser roubado deles, que agora têm que se preocupar se algum maluco vai entrar na sala de aula e matar todo mundo, que perdeu dois anos de juventude (e muito mais coisa) na pandemia, mas que ousa questionar, como questionaram todas as gerações que vieram antes dela.
Mas eu poderia ter achado o texto engraçado, talvez até “correto”, afinal sou o público-alvo dele: homem branco casado de 40 anos classe média morador do centro expandido de São Paulo. Até por essa proximidade, sempre curti os textos do Prata, e me entristece que ele tenha caído nessa saída fácil dos “jovens de hoje em dia”, fazendo coro a uma guinada editorial bem esquisita pra direita da própria Folha em que ele publica, reverberando essa crítica fácil à “cultura woke” ou algo que o valha, requentando uma pauta importada dos EUA que pouco diz no contexto brasileiro, que cheira a homens brancos de meia idade ressentidos porque não são mais o centro do universo.
Eu mesmo cheguei a concordar mais com esse tipo de crítica, meio assustado com matérias que saíam sobre uma suposta “ameaça à liberdade de expressão” de professores com viés mais conservador nas universidades dos EUA, e que chegou também ao Brasil de alguma forma. O que é incrível quando vemos que toda ameaça real à liberdade de expressão de professores, acadêmicos, cientistas, pesquisadores, nos últimos anos veio da extrema-direita, e não dessa juventude da “esquerda woke” que, ademais, não tem nem poder para peitar assim uma estrutura tão elitista quanto a Academia.
O texto do Prata me pegou justamente porque eu estive em uma situação praticamente idêntica à narrada por ele. Num momento da pandemia me deu uma louca e resolvi me inscrever pro vestibular pra cursar Letras na USP. E ano passado lá estava eu na FFLCH, aos 40 anos, tendo entrado em jornalismo ali do lado na ECA há exatos 20 anos, meio preocupado em ser visto pela garotada de 17/18/19 anos como um tiozinho cringe (aliás muito louco ter essa insegurança do alto dos meus 40 mas enfim, o caso recente sobre pessoas mais velhas na universidade lembra que isso é sim uma questão), com medo de falar alguma bobagem na aula e ser “cancelado” pelas minas hiperfeministas, ou por algum tipo de mala militante que eu imaginava que encontraria ali.
Mas o contato real com essa molecada foi bem diferente e tem me deixado gratamente surpreso. Apesar de ter questões óbvias ali como a seriedade das questões de saúde mental, em especial ansiedade, nessa geração, encontrei uma galera muito cabeça boa, consciente e tranquila em relação a todas essas questões que têm angustiado o pessoal da minha geração. Pra eles, todo esse rolê de feminismo, antirracismo, LGBT, tá muito bem resolvido. Claro que o meu recorte é um recorte (estudantes da FFLCH tem, sim, um perfil, embora ele tenha mudado pra melhor justamente nessa questão da diversidade de cores, corpos, gêneros, expressões, RENDA, etc). Talvez precise dar um pulo na Poli pra ter um choque de realidade, mas o que vi tem sido isso.
Na aula de Literatura Brasileira 1, que é basicamente Modernismo, analisamos alguns poemas do Drummond, entre eles o “Homem de Sete Faces”. E ninguém interrompeu a leitura do professor – o excelente Ivan Francisco Marques, pra falar que o primeiro verso, ou qualquer parte do poema, era “problemático”. Depois que todo mundo ouviu tudo, aí o professor abriu para as discussões, e todas as falas dos alunos foram pertinentes, acrescentaram, enriqueceram a produção de conhecimento que estava rolando ali. Aliás, ANTES de começarmos a ler os poemas dele (e dos outros autores, Mario e Oswald de Andrade), o professor dava uma aula pra contextualizar quem foram, o lugar deles na História etc., e obviamente já ali apareciam as problematizações todas que poderiam ser feitas.
Inclusive, o mais louco, e que aponta um grande desconhecimento do Prata sobre o ambiente que ele tava tentando descrever ali, é que, pelo menos na FFLCH-USP, os lugares sociais desses e dos outros autores que costumam compor o cânone da literatura brasileira sempre foram bastante questionados, se pá é a GRANDE questão que perpassa os estudos sérios de literatura brasileira desde pelo menos a fundação dos estudos literários sérios por aqui. Antonio Candido, que ele cita como um dos que estariam se revirando no túmulo, fez isso com maestria, assim como Alfredo Bosi e outras lendas da casa.
Por isso, pra mim, se essa foi uma tentativa de defender o legado literário de Drummond, que segue incontestável e admirado até pelos estudantes jovenzinhos atuais, que em geral entendem a proporção da coisa e também têm bem resolvida essa questão de “separar a obra do artista”, nem pra isso serviu muito. Defender o mérito de Drummond como poeta não significa coloca-lo numa posição de santidade inatacável ou tentar admirá-lo de um “não-lugar”, uma espécie de outra dimensão em que a criação artística nada tem a ver com o contexto histórico, social, econômico, de uma época.
Se foi uma tentativa de defender os professores que só estão tentando levar conhecimento pra esses jovens de hoje em dia que não sabem de nada, para serem atacados, também acho que errou bem o alvo. Como sabemos, quem coloca os professores como alvo é a extrema-direita. E os professores que eu estou tendo na Letras todos parecem estar entendendo que é preciso falar sobre todas essas questões pois é uma demanda dos alunos, mas estão conseguindo levar bem, felizmente evitando cair nesse narcisismo de achar que “na minha época é que era bom” e ouvindo de forma generosa os alunos.
E se foi uma crítica à geração atual, acho que tem muita coisa que pode-se criticar sim, mas pra isso, é preciso minimamente conhecer quem é essa garotada no mundo real, as pressões econômicas e sociais, o contexto político, e porque questões como racismo, misoginia, homofobia, capacitismo, decolonialismo, parecem ter tomado tanta relevância e porque a reivindicação de direitos para parcelas da população que até hoje teve direitos negados é vista como uma ameaça por quem sempre teve todos esses direitos “dados de barato”, mas só pra eles, e agora imaginam que, se o jogo virou, fatalmente passarão a ser perseguidos e discriminados.
A geração Z que tá chegando agora nas universidades – embora todo esse lance de Millenial, Geração X, Geração Z também seja algo muito mais do contexto americano que a gente importa sem pensar muito – é a geração que vai enfrentar o fim do trabalho com o avanço da AI e automação, mais mudanças climáticas, mais uma situação de estagnação econômica e avanço da desigualdade que parece irreversível, mais a ameaça também permanente da extrema-direita e do nazifascismo, e tá querendo só ser jovem e viver e questionar e amar e curtir literatura e também entender o contexto social em que ela é produzida. Claro que, como qualquer jovem de qualquer época, vão ter ideias equivocadas, falar besteira – e pela minha experiência vejo que a minha geração era bem pior nesses quesitos.
O mais legal de estar fazendo uma segunda faculdade com 40 anos é ver em como muita coisa evoluiu desde 2002, quando eu entrei pela primeira vez naquele campus. A transformação trazida pelas cotas é gritante, e pra muito melhor. A organização das mulheres, que eu vi começando lá atrás e, como jovem besta que era, via com certo desdém, deu muitos frutos e melhoraram muito a experiência de estar na universidade para elas. A evolução na questão das identidades de gênero e sexuais também é gritante, e não nego que às vezes tomo uns sustos, só depois pra pensar “olha como eu ainda sou meio besta por achar isso estranho”.
Enfim, só digo que A BASE VEM FORTE, a geração Z parece ter uma ligação forte com a X, outra que cresceu com estagnação econômica e NO FUTURE, e reagiu produzindo coisa legal na contracorrente. Eu acredito é na rapaziada.