O antissistema que o sistema adora
Como a extrema-direita consegue convencer que a esquerda é o verdadeiro sistema
Entre as diversas maluquices de nossa dumbest timeline, uma das que mais me deixam transtornado é como a extrema-direita conseguiu se vender como “antissistema”, quando ela é exatamente tudo o que o “sistema”, como podemos definir atualmente, ama. A tese dessa nova extrema-direita é que a esquerda (ou o que eles consideram esquerda, ou seja, tudo que não seja eles) representa o “sistema” atualmente e eles renegam os valores desse sistema.
O que seriam esses valores? Basicamente, o feminismo, o antirracismo, as pautas LGBT+, enfim, a tal “política identitária”. Teríamos que partir da premissa de que essas pautas já estão consolidadas e são aceitas pela maior parte da sociedade, o que é bem discutível – e o próprio sucesso dessa política “anti-identitária”, em outras palavras, pró-racismo, machismo, homofobia etc., prova que a pauta identitária, que eu prefiro chamar de pauta de direitos, está longe de representar “o sistema”. São grupos oprimidos tentando ter o mínimo de garantia de direitos.
OK, estamos ouvindo muito falar em ESG, diversidade, inclusão, antirracismo, feminismo, grupos de afinidade, letramento, nas grandes empresas. A Globo fala desses temas. Mas é muito discutível o que esse (bem-vindo) aumento na visibilidade dessas pautas nos últimos anos fez de real para melhorar a vida das mulheres, pessoas negras, LGBTs etc, e para abalar a estrutura de poder branca, patriarcal, heteronormativa.
De qualquer forma, se vender como antissistema foi uma grande sacada do Trump, Bolsonaro e agora do Pablo Marçal, mas eles nunca foram antissistema. O Trump nasceu herdeiro de um império imobiliário de Nova York e sempre teve tudo na mão, mas mesmo assim conseguiu falir muitos dos seus negócios. O Bolsonaro fez carreira militar e depois política, nunca na vida trabalhou fora da estrutura do estado brasileiro, desde sempre nós que pagamos o salário dele.
E o Pablo Marçal? Ele é uma atualização desse método “antissistema” populista da extrema-direita que surgiu na década passada com Trump, Bolsonaro e outros. Claro que segue a cartilha em grande medida, e pela chave neopentecostal ecoa toda essa pauta “anti-identitária”, mas o que ele vende não é exatamente isso. Trump e Bolsonaro vendiam uma “politics of despair” (política do desespero) que apelava principalmente para homens brancos, de classe média para cima, mas que se sentiam decaindo economicamente, e em vez de oferecer uma solução real para o problema, ofereciam bodes expiatórios que seriam sacrificados: imigrantes, refugiados, mulheres, negros, LGBTs... Justamente os que haviam tomado o que por direito era dos homens brancos.
O modelo coach, encarnado por Marçal, parte do mesmo lugar e apela ao mesmo tipo de gente que o modelo Trump-Bozo, mas oferece uma saída que parece ser real. Ele diz que é possível esse cara que se sente fracassado e punido pelo “sistema” prosperar, por meio da tal mudança de mindset, ou seja, por meio de um autoaprimoramento individual. E esse estilo do coach se encaixa como uma luva no paradigma neoliberal desse capitalismo tardio em que vivemos.
Desde a década de 1970 nos países centrais do capitalismo, foi implantado esse modelo neoliberal que, nos EUA, Reino Unido e boa parte da Europa Ocidental, com reflexos ainda mais brutais nos países periféricos como o Brasil, destruiu a possibilidade de quem não tivesse formação superior conseguir um emprego estável que pagasse o suficiente para manter um estilo de vida de classe média.
Para os homens brancos que formavam a maior parte da força de trabalho nesses países, perder a possibilidade do emprego industrial significou perder todo o seu referencial de vida, ao mesmo tempo em que as mulheres e minorias em geral reivindicavam seus direitos e começavam a aparecer mais na vida pública, e no mercado de trabalho. Após a crise de 2008 tudo piorou, e a política de austeridade implementada nesses lugares degradou ainda mais a vida, enquanto uma nova onda de imigração e refugiados chegava a esses países. Foi a receita para a explosão da nova extrema-direita, mas as redes sociais foram o fator chave que provocou a tempestade perfeita.
O modelo da internet que conhecemos é fruto direto da virada neoliberal dos anos 80 e 90, e as Big Techs foram as grandes vencedoras dessa Era Neoliberal, sendo hoje as maiores e mais lucrativas empresas do mundo, suplantando as antigas gigantes do mundo industrial. E o modelo de comunicação via redes sociais que essas empresas vendem permitiu que o discurso da extrema-direita se propagasse enormemente. As próprias Big Techs se vendem como o antissistema, todo o discurso utópico da internet, da Apple enfrentando o “Grande Irmão” IBM à lenda de startups como Google, Facebook e Amazon começando em uma garagem ou alojamento universitário, com um jovem visionário que só tinha um sonho e vontade de trabalhar, da “informação que quer ser livre”, se alinha naturalmente a esse antissistema político tecnofascista/ultraneoliberal.
Essa profusão de coachs, influencers, esquemas de pirâmide, toda sorte de golpes e fraudes, crypto, IA, bet, jogo do tigrinho, enfim, o que hoje move a economia brasileira (risos nervosos) tem raiz nessas dinâmicas aplicadas a uma economia periférica como a brasileira, que se reprimarizou nas últimas décadas, destruindo o que havia de indústria nacional (devido exatamente à dinâmica neoliberal). O agronegócio, que precisa de pouca mão de obra, se tornou o setor mais importante. Na década 2003-2013, as políticas do governo Lula e Dilma seguraram o emprego com o investimento público como propulsor, mas a coisa colapsou em 2014 e tivemos uma onda de desemprego em massa que só agora – coincidentemente, com a volta do Lula – está refluindo. Falavam que a reforma trabalhista ia resolver, mas ela gerou a uberização/precarização que também encaixa perfeitamente nesse paradigma neoliberal. Os desempregados viram “empreendedores”, ganham uma oportunidade de correrem atrás.
Sabemos ao que isso leva, e é claro que o Marçal é cultuado especialmente nesses grupos como motoboys, entregadores e motoristas de aplicativo. Com a porta fechada para oportunidade de ascensão social pelas vias tradicionais (estudar, entrar em uma grande empresa, fazer carreira, se aposentar), as redes sociais anunciam todas essas formas de ganhar dinheiro fácil e que, na verdade, só estão tomando mais dinheiro de quem já está ferrado e direcionando para o topo da pirâmide. O Marçal e muita gente ganhou muito dinheiro com isso, mas o grosso do dinheiro desse rolê todo mesmo vai para as Big Techs. O ehtos capitalista é a do empreendedor de si, o ser humano tornando-se ele próprio um produto, o individualismo extremo, e o Marçal encarna tudo isso. Ele é o sistema encarnado. Se opera ali no limiar da ilegalidade, isso também tem tudo a ver com o zeitgeist atual. Hoje, o Marçal reflete o que é o sistema até mais que o Trump ou o Bolsonaro, que já parecem ser “personagens da temporada passada”.
Mas muita gente que está sendo literalmente roubada por gente como o Marçal acredita que o verdadeiro sistema é representado pelo cara que é filho de médicos, foi criado na fina flor da burguesia paulistana de Pinheiros, mas que resolveu largar tudo isso e ir morar em barraca de lona em ocupação para ajudar quem não tem nada a ter alguma coisa. O cara que acredita em coletividade, solidariedade, essas coisas fora de moda. Vai entender.